Homem assiste a televisão, mulher chega em casa.
MULHER: Desculpa o atraso! Eu tive que ficar lá na loja até agora. A menina que ia me render só chegou agora.
HOMEM: São 9 horas de manhã!
MULHER: Eu sei, João, mas é que choveu demais, a menina só conseguiu chegar agora de manhã. Eu só pude largar agora.
HOMEM: Ô, sai da frente! (fala em relação à TV pois ela ta na frente da TV).
MULHER: Ah, desculpa. Vou preparar alguma coisa pra você comer.
HOMEM: (sempre olhando pra TV, sem olhar pra ela, mal-humorado) Não precisa.
MULHER: Eu faço rapidinho.
HOMEM: Eu já comi.
MULHER: Ué, você comeu o quê?
HOMEM: ...
MULHER: Você não quer saber como foi o meu primeiro dia de trabalho?
HOMEM: Que primeiro dia? Que pra mim já é o segundo porque você foi pra lá ontem. De manhã! È pra perguntar como é que foi ontem?
MULHER: Desculpa, João, foi o temporal, eu não podia sair de La enquanto o pessoal do outro turno não chegasse... tem que revezar, não pode largar assim. (puxa assunto) ih, tava tudo alagado, você tinha que ver. E eu tava morta de sono, achei que nem fosse agüentar, mas eu acho que eu fiz tudo direitinho porque/
HOMEM: Sai da frente. Ta atrapalhando. (a TV).
MULHER: ah, desculpa, a TV. (ela sai da frente) Então, viu? Você fala que eu não sei fazer nada, mas eles até me elogiaram o meu trabalho sabia? Disseram sabe o quê? Disseram que eu sou organizada.
HOMEM: É porque eles não viram como é que você deixou a pia aqui de casa antes de sair.
MULHER: ah, desculpa Joao mas é que eu tava tão nervosa, num queria atrasar logo no meu primeiro dia de trabalho.
HOMEM: Eu tive que lavar aquela merda toda sabia? E você sabe que eu não lavo louça! Sabe que eu não gosto de lavar louça.
MULHER: Mas João por que você fez isso? Eu disse que ia lavar quando eu voltasse...
HOMEM: ...
MULHER: Ah, João, foi tão bom lá...
HOMEM: Você gostou?
MULHER: Ah, gostei tanto.
HOMEM: Gostou do quê?
MULHER: Ah, não sei, gostei de tudo.
HOMEM: Como é que alguém pode gostar de trabalhar no caixa de uma lanchonete de posto de gasolina? Trabalho idiota.
MULHER: (um pouco ofendida) É o meu primeiro trabalho João. (tempo) Eu tava com medo de como ia ser. Mas eu achei legal.
HOMEM: Legal o quê? Ficar lá batendo preço de sanduíche? Pelo amor de deus Gisele! Isso é coisa pra débil mental. Fala Sério! Ô Gisele, põe uma coisa na sua cabeça. Sua hora passou, você não estudou porque não quis. Agora não faz o menor sentido você ficar quererendo trabalhar fora sem ter preparo nenhum. Sabe o que você vai conseguir? Só merda! Só subemprego que nem esse. É isso que você quer? Ficar de empregadinha de posto de gasolina?
MULHER: Mas eu posso começar assim devagarinho e ir crescendo...
HOMEM: Ah, ta, vai crescer, vai virar frentista! Cai na real Gisele. Você não sabe fazer nada. Tem gente que consegue tem gente que não. E ponto. Você não se preparou Gisele. Engoliu mosca. Você não estudou nada, não fez porra nenhuma, agora pelo menos ajuda na casa. E pára de encher o meu saco com essa ladainha!
MULHER: Eu não estudei porque eu tive que cuidar da nossa filha João.
HOMEM: Bem-feito! Quem mandou embarrigar? Devia ter se cuidado, isso sim.
MULHER: (tempo, ela tenta dialogar) João, eu já perdi muito tempo da minha vida...
HOMEM: Ih, vai começar de novo com a ladainha? Pelo amor de Deus!
MULHER: Eu preciso começar a trabalhar mesmo que seja do zero, não tem problema, eu só quero me sentir útil.
HOMEM: (debocha) ah, eu quero me sentir útil!
MULHER: É, João. Eu preciso sentir que eu sei fazer alguma coisa. Que eu posso fazer alguma coisa. Hoje lá no posto eu senti uma coisa diferente, sabia? Pela primeira vez em muito tempo eu senti que... ah, eu me senti crescendo.
HOMEM: Crescendo? Você devia era ta engordando comendo aquelas besteiras todas que tem lá. Tomou sorvete? Fala?
Encheu a pança de sorvete de novo não foi?
MULHER: Pára com isso, João, eu to falando sério. Ontem, lá no posto, eu aprendi várias coisas.
HOMEM: Aprendeu o quÊ? Aprendeu o quê? Não, me diz, em nome de Deus o qué que você pode ter aprendido no seu primeiro dia de empregadinha de posto?
MULHER: Eu vi muita coisa lá ontem. Tinha muita gente ilhada no posto por causa da tempestade. A água subiu tanto... tinha uns 35 carros parados lá no posto.
HOMEM: Ah ta, então você aprendeu que quando chove no Rio a rua alaga? Ó !!
MULHER: Não... não é isso João. Mas é que tinha tanta gente lá... e cada um com uma história diferente. João, tinha um vovô que tava todo molhado, olha ele tentou passar com o carro mas o carro morreu e ele teve que descer no meio da chuva, agora você imagina, com água até o joelho. Ele tava segurando um vaso de flores, ele ficou o tempo todo segurando aquele vaso. O tempo todo João. Eram flores tão lindas. Fiquei me perguntando o que ele ia fazer com elas. Pra quem será que ele ia dar hein?
HOMEM: Hum, e daí?
MULHER: Daí eu pensei em como deve ser bom ser amada que nem essa mulher que vai receber essas flores.
HOMEM: Vai ver que nem é mulher que é homem. Vai ver o vovô é gay.
MULHER: Depois eu fiquei lá olhando um monte de gente que tava indo pra um casamento. Todo mundo super arrumado e preso lá no posto. Sem poder sair de lá. As mulheres com aqueles vestidões, o cabelo todo arrumado e elas sentadinhas no degrau na porta da loja, esperando a chuva passar. Você precisava ver João. Fiquei com uma pena da noiva, ela deve ter passado o ano inteiro organizando a festa pra na hora acontecer essa tempestade e acabar com tudo.
HOMEM: Sorte do noivo, que escapou do casamento.
MULHER: Eu vi também uma mulher no celular contando pra amiga que matriculou o cachorro dela numa escola especial para cachorros. Uma escola pra cachorro, vc ta ouvindo João?
HOMEM: (FAZ sinal pra ela sair da frente).
MULHER: A escola tinha até natação João e treino em inglês pros cachorros! Uma fortuna, 580 reais a mensalidade! So que tem o seguinte, ela paga isso tudo pro cachorro lá dela mas ela negou na minha frente um sanduíche pra um menino que tava lá no posto que eu vi. O menino cheio de fome João e ela negou. Teve uma hora que ela mandou ele tirar a mão do carro dela para não sujar. Eu vi. Ninguém me contou não.
HOMEM: Tá, parabéns, agora dá pra sair da frente?
MULHER: E tinha um casal muito estranho. Eles tavam na mesinha do lado do caixa. Você acredita que eles ficaram sentados lá umas 4 horas por causa da chuva e nesse tempo todo eu não vi eles trocarem uma palavra João? Ela só ficava lendo uma revista o tempo e ele lá calado. Aí quando acabou ela leu tudo de novo, de trás pra frente. È incrível que um casal possa terminar assim... O silêncio deles era tão triste... me deu até um aperto na garganta... você não acha horrível quando as pessoas não tem mais nada pra dizer uma pra outra? Hein?
HOMEM:... (ele não responde, vê TV).
MULHER: Mas aí do nada apareceu um homem, alto, barbudo e veio até o caixa, parou e ficou me olhando. Me olhando, me olhando... Aí ele me perguntou. Você não ta me reconhecendo não? Fiquei la tentando me lembrar mas você sabe que eu sou péssima pra essas coisas.
HOMEM: Vc é péssima pra várias coisas.
MULHER: (respira fundo) Mas então... sabe quem ele era? O Marcelo, o Marcelo, o meu melhor amigo no tempo do colégio. Eu já te falei do Marcelo lembra? Então? Ele tá tão diferente. Tá barbudão (ri). Ele montou uma empresa de esportes radicais, esse negócio de fazer trilha, descer rio... Ele ta bem na vida.
HOMEM: E você falou o que pra ele? Que virou dona de casa?
MULHER: Ele me disse que era apaixonado por mim no colégio...
HOMEM: Apaixonado por você?!
MULHER: É. E que era apaixonado até hoje. (ri feliz) Sabe o que ele disse? Que eu não mudei nada, que eu continuo linda.
HOMEM:Tá, parabéns, então no seu primeiro dia de trabalho você também descobriu que os homens mentem.
MULHER: Não João, você não ta entendendo. Na verdade eu descobri muito mais do que isso. É... Na verdade eu descobri, com o velhinho, que eu to com vontade de ganhar flores, é eu quero ganhar flores... eu quero muito ganhar flores... eu não consigo passar nem mais um dia sem ganhar flores. Eu acho que eu não consigo passar nem mais um minuto sem ganhar flores.
HOMEM: Gisele dá pra sair da.../
MULHER: (CORTANDO ELE) Não, agora escuta. Você não queria saber o que é que eu aprendi lá ontem? Então, com a mulher do cachorro eu vi que eu não preciso conviver com gente idiota... aliás ninguém precisa, a gente convive é de bobo. Com os convidados do casamento eu descobri que um casamento pode acabar de repente... ou pior, pode ir acabando aos poucos, um pouquinho a cada dia, até ficar só o silêncio. Aquele silêncio do casal na mesinha... E teve o Marcelo também, tão bom ter reencontrado o Marcelo. Tão bom saber que tem gente assim que nem o Marcelo por aí né? Então,João, pra um primeiro dia de trabalho até que eu descobri muita coisa né? Bom, eu vou dormir porque eu to cansada e amanhã é meu segundo dia de trabalho e eu quero estar bem. Agora, eu vou te deixar com a sua TV, aliás eu vou te deixar João... Boa noite. (ela sai, ele fica pensativo, a t v ligada, mas dessa vez ele não olha a tv).
Fim.
Vídeo da cena
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Império do Amor
Leandro Muniz
Dois jogadores de futebol, prontos para treinar, jogam conversa fora.
HOMEM
Eu adoro “Free Willy”!
HOMEM 2
Mas você já leu Moby Dick?
HOMEM
Curto mais Stanislavski...
HOMEM 2
Ouvir Mozart enquanto leio Lacan, adoro.
HOMEM
O dadaísmo me encanta...
Entra Adriano(muito sério e másculo sempre). Silêncio. Os dois abaixam as cabeças, amedrontados.
ADRIANO (faz gesto positivo com a mão, mas fala sério)
Fala pessoal!
Os dois param de falar, olham para ele, e correm para abraçá-lo, animadamente.
HOMEM
Fala Adriano!
HOMEM 2
Que saudade!
HOMEM
Bom ter você de volta!
ADRIANO ( sem graça)
Pois é, tive alguns probleminhas, mas já foram resolvidos.
HOMEM 2
Estávamos torcendo por você!
HOMEM
Foi uma injustiça o que fizeram!
ADRIANO
As noticias correm né?
HOMEM 2
Sim, mas sabemos que você teve motivos.
HOMEM
A gente sabe que você é um cara do bem!
ADRIANO
Mesmo assim acho importante esclarecer.
HOMEM
Não precisa.
HOMEM 2
Olha, não precisa mesmo...
ADRIANO
Por volta das seis horas da tarde eu cheguei ao clube para treinar. O treino estava marcado para as 8 da manhã...
HOMEM
Normal..
HOMEM 2
Pô, todo mundo atrasa.
ADRIANO
O supervisor disse que o treinador queria falar comigo, eu disse que ele viesse até mim.
HOMEM 2
Natural, você devia estar cansado.
HOMEM ( compreensivo)
Foi dormir tarde, acordou cedo...
ADRIANO
Ele veio. E começou de blábláblá, dizendo que gosta muito de mim como pessoa...
HOMEM
Huumm... Que viadagem...
HOMEM 2
Esse treinador nunca me enganou.
ADRIANO
Ele começou a babar um pouco no canto da boca, já não é a primeira vez que isso acontece...
HOMEM 2
E?
ADRIANO
Eu já tava de saco cheio, quando ele disse: É melhor você parar de beber todos os dias!
HOMEM ( indigna-se)
Ele disse isso? Quem ele pensa que é?
HOMEM 2
Que absurdo! Você só bebe a noite!
HOMEM
Pode crê, nunca vi esse cara beber no treino!
HOMEM 2
Você é do bem cara, do bem!
ADRIANO
Bom... O resto vocês já sabem. Já tiraram o corpo dele de dentro do gol?
HOMEM 2
Já sim. A funerária veio cedinho aqui.
HOMEM
Dizem que entrou no ângulo. É verdade cara?
Silêncio.
ADRIANO ( tímido e sorridente)
Pô, é sim, é sim... Mó golaço...
HOMEM
Manero!
HOMEM 2
Você é foda!
ADRIANO
Pô, daí já temos um novo treinador, e eu fui liberado pela polícia.
HOMEM 2
Claro, nada ver terem te prendido!
HOMEM
Pô, quem nunca usou armas de fogo contra um treinador?
HOMEM 2
Quem nunca chutou um cadáver pra dentro do gol?
HOMEM
Quem nunca deu uma estupradinha numa funcionária?
HOMEM 2
Quem nunca teve um site de pornografia infantil?
HOMEM
Quem nunca fez uma cirurgia de aumento peniano?
ADRIANO e HOMEM 2, ficam olhando para Homem, que constrange-se.
ADRIANO
Chega de jogar conversa fora, vamos treinar?
HOMEM
Vamos.
Homem e Homem 2 começam a se alongar, ou fazer pequenas corridas pelo palco.
ADRIANO
Quer dizer, acho que eu vou pra casa.
Eles param de se alongar e/ou de correr, e olham pra Adriano.
HOMEM 2
Você que sabe.
ADRIANO
Muito estresse...
HOMEM
A gente entende.
ADRIANO
Pô, briguei com minha mãe hoje, deixei ela amarrada na cozinha, to meio bolado.
HOMEM 2
Coé cara, é por isso que você vai embora?
HOMEM
Bicho, você já foi mais irmão, parceiro!
ADRIANO ( estressado aproxima-se de Homem)
Coé mermão? Tu vai mexer com a minha mãe?
HOMEM
Não, que isso cara...
ADRIANO
Você ta me provocando, porra, você obrigado a te beijar, brother!
HOMEM 2
Calma Adriano, não faz isso cara!
ADRIANO
É isso mesmo! Vou beijar esse maluco, ta de marra pra cima de mim!
HOMEM
Coé parceiro, fica na moral!
ADRIANO
Eu to na moral, mas tu ta me provocando, e porra cumpade, tu é mó gostoso!
HOMEM 2
Calma cara!
ADRIANO
Calma nada, eu vou partir pra cima desse maluco e lamber esse corpinho todo amarradão!
HOMEM 2
Eu vou nessa, tenho que mandar um twitter pra minha vó, valeu!
HOMEM 2 tenta sair, mas é impedido por Adriano, que o pega pelo braço.
ADRIANO
Você também fica!
HOMEM 2
O que você quer?
HOMEM
Não basta todos do time que você já molestou?
HOMEM 2
Libera a gente cara!
ADRIANO
Não. Agora eu me alterei! Pô, to com mó tesão cumpade, bora fazer um troca-troca do bem!
HOMEM
Ai...
HOMEM 2 ( pra Homem)
E agora?
ADRIANO( se emputece)
Agora, geral vai ter que me beijar, senão eu vou ficar bolado e matar geral!
Adriano pega a cabeça dos dois, uma com cada uma das mãos, e fica forçando em direção a sua cabeça, como se forçasse os dois a o beijarem. Quando o beijo estiver muito próximo, as bocas bem próximas, os 3 atores param, e numa quebra começam a falar como atores, e não como personagens.
ADRIANO
Ok, beleza.
HOMEM
Beleza, já deu.
HOMEM 2( pra platéia)
A gente só ensaiou até aqui. (pros outros) Acho que deu né?
HOMEM
É, pode crê.
HOMEM 2
Então, é isso. Acabou a cena.
ADRIANO
Pode crê.
Os três vão saindo de cena, nesse clima meio “ok, acabou a cena, foi bacana”.
Durante a saída, Homem 2 fica no palco, e Adriano e Homem saem conversando.
ADRIANO
Poxa “fulano” (chama-o pelo nome do ator), bora tomar uma cerveja hoje, sei la, to amarradão em virar a noite contigo hoje, borá?
HOMEM
Coé mermão, sai fora.
Os dois saem de cena. Homem 2 fica sozinho no palco.
HOMEM 2 ( pra platéia)
Bom, eu queria pedir desculpas a todos aqui presentes. Foi uma cena um pouco estranha, nós não queríamos que acontecesse esse tipo de situação constrangedora, desculpem. Nem pretendíamos insultar os jogadores de futebol, muito menos os homossexuais, Lacan, ou Free Willy, que tanto amamos. Foi uma opção do autor (muda o tom para um tom mais íntimo com a plateia), que vamos combinar, não é láaa um autooor dos mais inspirados, não é mesmo? Peraí, só um segundo.
Homem 2 pega um papel do bolso, e começa a ler.
HOMEM 2 ( lendo o papel, rapidamente)
Foi uma opção do autor, que vamos combinar não é lá um autor dos mais inspirados, não é mesmo? Pega o papel do bolso, olha pra platéia, Black out rápido.
Black Out.
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