terça-feira, 27 de outubro de 2009

Palinha do espetáculo de quarta passada - dia 21/10 - tema Vizinho


Do Amor                                                                           
de Cristina Fagundes

Música suave.
Um velho do lado esquerdo do palco e uma velha do lado direito, falam com a platéia.  È tudo muito suave, num tom de intimidade.

VELHO: A primeira vez que eu vi a Maria Flor foi numa festa, na casa do Ernesto,.  (música de bossa nova), ela tava dançando... Ela tava linda! Tava com os cabelos soltos, como ela usava naquela época.

VELHA: Eu estava com as sandálias francesas da mamãe...

VELHO: Eu fiquei hipnotizado por ela.

VELHA: Eu nem notei o Otávio.

VELHO: Fiquei observando-a de longe a noite inteira. 

VELHA: Fiquei conversando com os meus amigos a noite inteira.

VELHO: Ela era o centro da roda. Sempre. Acho que era o sorriso dela. Seu sorriso era a luz e nós éramos as moscas.

VELHA: Eu tava tão feliz! Eu tinha acabado de dirigir minha primeira peça e tinha saído uma crítica maravilhosa justamente naquele dia.

VELHO: Tinha muita gente importante na festa, artistas, intelectuais... E todos os homens de olho nela.  Chamavam-na pra dançar, traziam drinks, paqueravam.

VELHA: Mas eu só queria me divertir, eu tava leve. 

VELHO: Eu queria me aproximar mas não tinha coragem.  Na verdade eu não achava que nada em mim pudesse interessá-la.  Eu era muito duro naquela época e se a grana era pouca, a auto-estima então, era menor ainda.

VELHA: A noite foi passando e os rapazes foram ficando mais insistentes e mais entediantes também.

VELHO: Lá pelas tantas eu desisti de vez de me aproximar e resolvi descontar a minha covardia na bebida.  A bebida é a melhor amiga dos covardes.  Bebi todas. 

VELHA: Finalmente chegou a hora do violão. Sempre rolava uma rodinha de violão nas madrugadas do Ernesto.  Ah, era tão bom! (seria legal a atriz cantar Chico ou algo de bossa nova)

VELHO: Meu Deus, ela ainda cantava! Puta merda e agora?  Num impulso ébrio eu resolvi que ia pegá-la nos braços e levá-la comigo pra casa, cantando. 

VELHA: O Otávio surgiu no meio da roda, me puxou pela mão e...

VELHO: Eu vomitei, vomitei toda a minha covardia misturada com cuba libre em cima dela.  A roda parou, a festa parou, o violão calou e eu queria morrer.

VELHA: Ele ficou tão envergonhado, coitado. Pediu desculpas.  Disse que só queria me conhecer e que...

VELHO: ... (pra ela ) eu não devia ter bebido tanto, mas você, você é linda demais, poxa, assim até ofende! E eu... e eu sou um Zé ninguém. Eu sou a mosca, compreende? A mosca! (volta ao presente)  Falei pra ela o que me roía a alma. 

VELHA: Ele enrolava a língua, guaguejava, tão frágil... e eu me apaixonei.  Pela primeira vez na minha vida eu me apaixonei.

VELHO: Ela ficou ali me olhando e eu só queria sumir dali.

VELHA: Peguei o Otávio pela mão e o levei para o banheiro.  Limpei-o com um cuidado apaixonado. Dei-lhe água para beber e dei-lhe também nosso primeiro beijo. Na boca.  Naquela mesma noite começamos a namorar.

VELHO: Namorar a Maria Flor era o sonho de qualquer rapaz.  E eu tinha sido o escolhido. Mas eu não conseguia entender o que ela tinha visto em mim.
Às vezes eu me pegava de boca aberta, olhando pra ela.

VELHA: Passado um mês eu descobri: Otávio era o homem da minha vida.  Fui ter uma conversa franca com Otávio.  (para ele) Eu quero me casar com você Otávio. Quero passar a vida ao seu lado.

VELHO: Mas por quê?

VELHA: Não sei. Eu simplesmente quero.

VELHO: E então eu compreendi.  Não podia ficar com Maria Flor nem mais um dia. Ela era perfeita, perfeita demais pra mim.   Ela era a luz e eu era a mosca.  E sempre seria assim. Acabei tudo ali mesmo e me afastei.

VELHA: Emagreci a olhos vistos, não conseguia mais viver sem ele.  O amor vicia.

VELHO: Me mudei para Belo Horizonte, queria ficar distante de qualquer notícia dela.  De qualquer traço do seu perfume.

VELHA: Eu chorei, chorei meses, anos.  E fiz o que todo mundo faz quando é abandonado.  Pensei no que eu ia fazer no dia em que ficasse cara a cara com ele.  Me imaginei linda, bem-casada, com filhos, eu ia sorrir e dizer que era a mulher mais feliz do mundo sem ele.  Otávio me olharia triste, como um cão abandonado e me diria que tinha se arrependido.  Mas agora era tarde.

VELHO: Todas as noites, antes de dormir eu me perguntava como ela estaria.  Mais linda ainda, certamente, a cada dia mais linda, mais cheia de vida, mais cheia de admiradores. A esta altura já devia estar casada com algum doutor e talvez até com filhos.

VELHA: Planejei vinganças. Passaria direto por ele, nem o cumprimentaria.   Canalha, como é que ele me deixava assim, como quem joga fora um lápis?

VELHO: Os anos foram passando...

VELHA: E eu vivi a minha vida...

VELHO:  sem grandes alegrias nem tristezas...

VELHA: uma vida morna.

VELHO:  Mas um dia, 40 anos depois daquela festa, eu fui ao Rio resolver um assunto de herança e na volta, ao me sentar no avião, um choque, quem estava na poltrona vizinha?  Maria Flor. Ela dormia, dormia profundamente, na poltrona vizinha à minha.

VELHA: Eu tava muito cansada, tava voltando com toda a minha mudança de São Paulo. Assim que entrei no avião, adormeci. 

VELHO: Passei a viagem toda olhando para ela. Ouvia sua respiração. Sentia seu perfume. O mesmo perfume de tantos anos atrás.  Tantas vezes pensei em como seria encontrá-la novamente, imaginava-a ao lado de seu marido ou com amigos rindo ou cantando, como na festa.  Nunca assim, dormindo, nunca assim desamparada.  Tão abatida, tão frágil. 

VELHA: Eu estava me separando de um marido que nunca amei.

VELHO: Maria Flor sempre foi para mim uma força da natureza, uma fortaleza, inexpugnável. Nunca imaginei, nem por um segundo, que pudesse vê-la assim indefesa, vulnerável.  Nesse momento, o avião teve uma  pequena turbulência e sua cabeça pousou suavemente em meu ombro, adormecida.    Então, depois de todos esses anos, eu finalmente compreendi.    Maria Flor precisava de mim. 

(opcional) VELHA: E desse dia em diante, minha cabeça nunca mais saiu daqui. 


Música bonita.  Luz cai suavemente. Fim.




O Telhado - de Oscar Calixto

(Um casal extremamente simpático aguarda atendimento numa clínica. Ele insinua-se para ela e ela o corresponde timidamente. Percebem-se quase que sem querer que um ou outro note que se observam . Ficam nisso durante um tempo até que ele deixe escapar a primeira frase.)


Norberto
Sabia que você é interessante?

Dagmar
Interessante?

Norberto
É, interessante!

Dagmar
Interessante como?

Norberto
Ah, Interessante, ué...

Dagmar (cheia de si)
Ah! Você também é... Interessante!

Norberto
Ah! Obrigado!

(Silêncio)

Norberto
Estranha a demora, não é?

Dagmar
Clínica barata!

Norberto
É... Tem razão. Você é de onde, mesmo?

Dagmar
Sou do Rio e você?

Norberto
Sou de Sampa.


Dagmar
Olha...

Norberto
Longe, né?

Dagmar
Que nada! De avião é um pulo! Metrópoles vizinhas!

Norberto
É.

Dagmar
São Paulo! Interessante! (pausa) São Paulo é tudo!

Norberto (rindo)
É sim... É bem bacana... Mas eu adoro o Rio.

Dagmar
Mesmo?

Norberto
Adoro. Pra mim, o Rio que é tudo!

Dagmar
E por que?

Norberto
As mulheres são mais bonitas!

Dagmar (totalmente sem graça)
Ah...

(Silêncio. Ambos ficam meio constrangidos)

Norberto
Desculpa te perguntar, mas... Você veio se consultar aqui por quê?

Dagmar
Falta de dinheiro.

Norberto
Mas você tem o que? Assim... Fisicamente?

Dagmar
De doença, você fala?

Norberto
É.

Dagmar
Nada! Exame de rotina... Colesterol, glicose, hemograma...  Besteira minha! Cuidados... Sabe como é...

Norberto
Ah... Que bom então, né?

Dagmar
É.

(Pausa)

Norberto
Cara, eu queria te falar uma coisa desde que você chegou, mas... eu não tive coragem! Mas agora que começamos um assunto, acho que fico mais à vontade...

Dagmar
Então fala, ué...

Norberto
Sabia que seus olhos são lindos?

Dagmar
Ah! Obrigada.

Norberto
São mesmo! Bem bonitos! São verdes, né?

Dagmar
É são assim meio Furta-cor, sabe?! Eles mudam. No verão ficam meio que azul.

Norberto
Sei... (pausa) Chega aí... (Fazendo sinal para que ela chegue mais perto. Ela chega.) É... Já te aconteceu de você estar num lugar diferente assim, tipo uma clínica e... desejar uma outra pessoa?

Dagmar
Não. Por que a pergunta?

Norberto
É por que está acontecendo comigo agora, entendeu?

Dagmar (Gostando, mas totalmente sem graça)
Está falando sério?

Norberto
Estou.

Dagmar
Olha! Interessante! Diferente, né? Numa clínica!

Norberto
É... é sim... é... Bem louco isso!

(Pausa)

Dagmar (chamando-o também. Ele se aproxima.)
Ai... Posso te confessar uma coisa?

Norberto
Pode, claro!

Dagmar
Eu menti pra você!

Norberto
O que... Você não é do Rio?

Dagmar
Não!

Norberto
Você usa lente!

Dagmar
Não! É que... Está acontecendo isso comigo agora também, entendeu?

Norberto
Ah, Olha... Interessante! E o que a gente faz com isso?

Dagmar
Não sei...

(Silêncio. Pausa longa... Eles se olham... riem um para o outro e desviando o olhar...)

Norberto
Acho que vai demorar até sermos atendidos!

Dagmar
Vai.

Norberto
A gente bem que poderia dar uma saidinha, né? O que você acha?

Dagmar
Ah, eu acho que não há mal... Pode ser interessante!

Norberto
Também acho! Vamos?

Dagmar
Mas aonde?

Norberto
Ali, no telhado!

Dagmar
No telhado?

Norberto
É.

Dagmar
Não é perigoso?

Norberto
Bom, aí Depende, né?!

Dagmar
Depende de que?

Norberto
Se a gente se segura... Né?

Dagmar
Hum... Entendi...

Norberto
Então? Vamos?

(Esquecendo a tímida e apostando na ousada:)

Dagmar
Vamos sim. Vamos.

Norberto (Em tom de segredo e terminando quase que com mais gestos que fala)
Tá bom, então... Olha só: Eu acho que tem muita gente aqui, reparando no nosso papo sabe? Então... Eu vou primeiro... depois você vai, tá??!
Dagmar
Tá bom, eu vou... Pode deixar! Tchau!

Norberto
Tchau!

(Ela disfarça um pouco com a pessoa mais próxima da platéia. Fala do Clima, ou de algo que aconteceu no dia a dia da cidade... Depois dá uma desculpa qualquer, se despede e ao som de uma música faz o percurso até o telhado. No telhado, eles se olham, se abraçam, ajudam-se no equilíbrio e procuram o sexo em lugar poético e incomum. Ao fim disto, deitam-se no chão, um de frente ao outro.)

Dagmar (eufórica)
Ai, essa foi a coisa mais louca que eu já fiz na vida!

Norberto
Eu também.

Dagmar
Tão bom fazer essas coisas no telhado! Nunca fiz.

Norberto
Nem eu.

Dagmar
Assim à luz do dia... No começo fiquei receosa. Mas depois não... Você me segurou muito! Nem tive medo de cair.

Norberto
Se caísse não teria problema!

Dagmar
Como assim?

Norberto
Não dá pra morrer.

Dagmar
É, mas eu me machucaria! Eu Acho. Ai, mas foi tão bom... Eu estava de olho em você desde a sua chegada!

Norberto
Verdade?

Dagmar
Verdade! Eu acredito em amor à primeira vista, e você?


Norberto
Eu não.

(Extremamente Delicada)

Dagmar
E se eu te disser que estou apaixonada?

Norberto
Apaixonada...

Dagmar
É sim, apaixonada! (Sentando-se) Quer casar comigo?

Norberto (Sentando-se)
Não.

Dagmar
Por quê?

Norberto
Porque você é burra!

Dagmar
Burra?

Norberto
Burra!

Dagmar
Eu não sou burra!

Norberto
É sim.

Dagmar
Não, eu não sou!

Norberto (quase fora de si)
É sim! É! É...

Dagmar
Mas por quê?

Norberto
Porque nós vamos morrer.

Dagmar
Como assim? Um dia todo mundo morre, meu filho! Está querendo me matar?

Norberto
Já te matei.

Dagmar
Quando?

Norberto
Agora.

Dagmar
Como assim?

Norberto
Sou soro-positivo, burra!



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